Vimos por meio desta prestar nossa solidariedade a Ana Luiza Dalcanal, aluna do 9º
período do curso de psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (RS), diante
dos ataques públicos que vem sofrendo pelo Diretório Acadêmico de Psicologia (DAPSI)
- Gestão Nise da Silveira, pelo Diretório Acadêmico Quilombo dos Palmares
(DAQUIPALM) - História, pelo Coletivo Heleniras, de mulheres dos cursos de História -
UFSM, pelo Diretório Central das e dos Estudantes da Estudantes (DCE) UFSM e outros
alunos da universidade.
No dia 19/04/2023, após ter ciência da tentativa de suicídio de uma aluna da biologia da
USP (Ribeirão Preto) como resultado de perseguições por conta de seus
posicionamentos enquanto feminista radical, Ana Luiza publicou uma série de stories na
rede social Instagram, reunidos em seguida em um vídeo de 13 minutos.
No vídeo, Ana Luiza comenta a violência contra feministas radicais e explica
didaticamente os pontos centrais da teoria do feminismo radical, com o intuito de
apresentá-la aos que, sem conhecer o arcabouço teórico, atacam as mulheres. Sua
única menção a pessoas que se declaram trans se dá no último minuto do vídeo:
"Como eu tenho várias coisas pra fazer e já ficou bastante coisa hoje, amanhã vou falar
sobre esse conflito do feminismo radical e identidade de gênero.
E quero falar também com todas as letras sobre a minha postura enquanto - quase -
psicóloga, sou contra hormonizar pessoas ou permitir que pessoas pensem que seres
mudam de sexo. Porque não mudam.
Ou qualquer coisa irresponsável que a minha categoria que era pra ser uma categoria
de SAÚDE tá aceitando pra pagar de progressista. Nós temos compromisso com a
saúde das pessoas, e tem muito psicólogo que tá botando bandeirinha trans, adoecendo e sendo conivente com o adoecimento de um monte de gente, PRINCIPALMENTE
mulheres e adolescentes, por ignorância e medo."
No dia 22/04/2023, o perfil de instagram "Spotted UFSM SM - conta reserva" postou
imagem retirada da conta de Ana Luiza (com seu rosto ocultado), com o seguinte texto,
encaminhado ao perfil: "Por que ninguém está falando da transfóbica do x semestre de
psicologia? Posta stories abertamente falando contra as pessoas trans e ninguém está
falando ou fazendo nada." (o semestre cursado foi ocultado)
Na imagem que acompanha o texto, pode-se ler o texto da transcrição feita acima, dos
últimos segundos do vídeo já mencionado.
No dia 24/04/2023 foi convocada reunião urgente do Diretório Acadêmico de Psicologia
- Gestão Nise da Silveira para tratar da pauta "caso de transfobia pela membro da
gestão, Ana Luiza", que fazia parte da diretoria de movimentos sociais.
Na ata pública da reunião, constata-se que os demais membros do Diretório a acusam
de transfobia e de ter cometido violência contra pessoas trans com suas falas. Os
demais participantes consideraram ser "muito difícil toda comunidade trans ter feito
críticas às suas falas e somente eles estarem errados", que "não há como colocar em
debate teórico uma situação de transfobia", que "o preconceito não pode ser respeitado,
que agora está na hora de cobrar essas responsabilidades e consequências dessas
falas" e, por fim, que sua opinião "não é liberdade de expressão, existem coisas que
não devem nem podem ser ditas".
A ata relata ainda tentativa de defesa de Ana Luiza por parte de um dos participantes,
que aponta que "transfobia é crime e que, por causa disso, toda acusação deve carregar
consigo uma prova", que o debate teórico "deve ser continuado e debatido
permanentemente a fim de alcançar algo muito maior e, de fato, construtivo" e que
discorda "com a propaganda de violência (feita via redes sociais) de estudantes do
curso, expondo o sentimento de “socar” Ana Luiza Dalcanal".
A ata conclui, entre outros encaminhamentos, pela retirada imediata de Ana
Luiza do DAPSI da UFSM, pelo envio dos encaminhamentos da reunião e de
nota de posicionamento aos demais Diretórios Acadêmicos e ao grupo de
Psicologia UFSM e por "levar ao Colegiado do Curso de Psicologia da UFSM o
caso de transfobia da discente". Como é possível constatar nos próximos
parágrafos, os encaminhamentos propostos incitam a replicação de discurso de
ódio e perseguição à aluna em questão.
Ainda não foi publicada a ata da reunião na qual o DAPSI levou o tema para o
Colegiado do Curso de Psicologia.
Outra ação proposta pelo DAPSI foi a realização de assembleia com os alunos
para a discussão do caso na sexta-feira (28/04/2023) às 16:00 e que será
acompanhada, conforme postagem do DCE, de um "Ato anti transfobia" a se
realizar no mesmo dia e horário, em frente ao prédio da Psicologia. A
convocação para o ato diz que "dia 21/04, foi exposto pelo spottedufsm as falas
transfóbicas de uma aluna do curso de Psicologia. Esse tipo de violência
marginaliza pessoas trans, travestis e não-bináries (...)" e que "Transfobia é
crime e não podemos nos deixar calar frente a esse tipo de violência!"
Em 25/04/2023, o DAPSI publicou em seu perfil no Instagram Nota de
Posicionamento "sobre os posicionamentos transfóbicos da ex-integrante" desde
então apagada, junto com os comentários quase integralmente críticos de
mulheres. As imagens da postagem, no entanto, podem ser visualizadas aqui. A
Nota se refere aos posicionamentos de Ana Luiza enquanto feminista radical
como transfóbicos e violentos, afirmando que transfobia é crime e que suas
manifestações "violaram diversos estudantes" e causaram "silenciamento,
desconfortos e violações". A nota diz ainda, sobre as opiniões de Ana Luiza, que
ela desrespeita a existência de outros e que as consequências desse episódio
"não só atingem a Psicologia, mas também demais cursos na UFSM".
Em 27/04/2023, o DAPSI novamente postou Nota de Posicionamento nas redes
sociais, com leves alterações no texto, porém mantendo as mesmas acusações
a Ana Luiza, dessa vez estendendo as supostas consequências violentas de
suas falas até para cursos de fora da UFSM.
O DAQUIPALM também postou nota de repúdio em seu perfil público do
Instagram, na qual vem "manifestar seu repúdio às falas criminosas de cunho
transfóbico publicadas por uma estudante de Psicologia em suas redes sociais.
A referida estudante vem publicando falas que atacam diretamente pessoas
transexuais, transgêneras e travestis, e que comprometem suas integridades, a
exemplo do último vídeo postado em sua conta do Instagram, onde a estudante
de Psicologia diz que o foco de sua militância "não é mulheres trans, mas
mulheres." A nota afirma ainda que a aluna apresenta "discurso com viés
eugenista que tira seus "embasamentos" de falácias preconceituosas. A
transfobia não pode ser entendida, de modo algum, como opinião ou liberdade
de expressão."
O Diretório apagou os inúmeros comentários críticos à nota, em uma atitude de
total falta de abertura para o contraditório ou diálogo com os que pensam de
outra forma.
Ana Luiza está sendo atacada e ameaçada em diversas postagens por alunos
da UFSM, chamada de "rata imunda", seus vídeos encaminhados com a legenda
"radfem não é gente, vocês são nojentas e desejo todo mal do mundo pra vocês", ameaçada publicamente por estudantes que disseram na rede social Twitter "eu
já vi essa quenga na UFSM, vamo trás", "vamo esculacha ela no soco eu e vc",
"ela tá pedindo só pode", "lugar de rad é debaixo de 7 palmos de areia".
A perseguição, fomentada por estudantes da UFSM e seus Diretórios, está se
estendendo para fora da universidade, conforme postagem conjunta, no
Instagram, do PCB Santa Maria e do Coletivo Feminista Classista Ana
Montenegro de Santa Maria que mencionam "episódios explícitos de transfobia
por parte de uma estudante de graduação da Universidade Federal de Santa
Maria" e divulgam o "Ato anti transfobia" a ser realizado na universidade.
Nenhuma das postagens mencionadas acima indica o que configuraria a
"transfobia" da qual Ana Luiza está sendo acusada. As acusações infundadas
dos DAs, no entanto, são o suficiente para que a aluna esteja sendo verbalmente
agredida em seu dia a dia na universidade, como o foi no Restaurante
Universitário, onde foi recebida aos gritos de "transfóbica", bem como ameaçada
virtualmente de agressões físicas, o que a impede de frequentar o espaço
universitário e suas aulas.
As opiniões pelas quais Ana Luiza está sendo atacada e ameaçada não apenas
estão protegidas pelo direito à livre manifestação de pensamento (art. 5º da
Constituição Federal) como são compartilhadas por milhões de mulheres mundo
afora, que reconhecem que a opressão que sofrem tem por base seu sexo.
Suas opiniões, embasadas em um campo teórico existente desde os anos 1960,
não são "violência", ao contrário da resposta aos seus vídeos.
A equiparação pelo Supremo Tribunal Federal da homofobia e da transfobia ao
crime de racismo não criminaliza críticas ao transativismo ou debates teóricos,
mas única e exclusivamente discriminação e violências dirigidas a indivíduos que
se identifiquem como trans, o que não foi o caso em nenhuma fala da aluna em
questão.
Por outro lado, o DAPSI, o DAQUIPALM, o DCE, o Coletivo Heleniras e os
demais alunos que participaram desse linchamento público estão incorrendo nos
crimes de calúnia e difamação ao acusá-la de um crime que não cometeu, além
de praticarem discurso de ódio contra o feminismo radical, incitando violência
contra Ana Luiza e outras mulheres que se identifiquem com essa teoria.
A universidade deve ser um espaço de livre debate de ideias, de forma
democrática. Uma universidade pública tem um compromisso ainda maior com a liberdade de pensamento, único campo fértil para uma produção científica rica
e plural. Todos os que estão vinculados a uma universidade devem se ater aos
princípios democráticos, incluindo o corpo discente.
Toda mulher tem o direito de se expressar publicamente a partir de sua vivência,
visão de mundo ou bagagem teórica, independente de sua ideologia, religião ou
orientação política. Na prática, no entanto, as mulheres ainda são impedidas de
gozar plenamente de tais direitos, sendo o único grupo ao qual atualmente não
se concede lugar de fala sobre a materialidade de sua existência e os impactos
das políticas de autoidentificação de gênero sobre seus direitos. Somos o único
grupo ao qual atualmente não se reconhece o direito de produzir sua própria
epistemologia.
O que as organizações estudantis acima mencionadas estão fazendo é a
perseguição a ideias contrárias às suas, mesmo sendo ideias perfeitamente
democráticas. Mais grave ainda, tal ataque à liberdade de expressão e
pensamento compromete todo o espaço democrático da universidade ao
sinalizar que é permitido perseguir publicamente mulheres de quem se discorde.
Solicitamos a esta Reitoria que tome as medidas cabíveis para garantir um amplo
debate em seu seio a respeito de democracia, liberdade de pensamento e o
papel da universidade em fomentar a troca de ideias entre seus membros. A
cultura do cancelamento que tem reinado nas universidades mundo afora
prejudica tanto aqueles que delas fazem parte quanto a sociedade como um
todo, que se vê privada dos benefícios de uma produção acadêmica rica e
variada.
O papel da universidade, para além de formar futuros profissionais, é o de formar
cidadãos. E não há futuro possível para o Brasil com uma juventude que não
aprenda na universidade a respeitar opiniões divergentes e debate-las de forma
democrática.
Assim, as abaixo assinadas organizações, mulheres e apoiadores solicitam à
UFSM que garanta a integridade física de Ana Luiza Dalcanal para que esta
possa frequentar a universidade e tome providências administrativas em relação
à atuação dos Diretórios acima mencionados neste episódio e às ameaças de
violência proferidas por alunos da instituição, prezando assim a manutenção das
condições essenciais para o bom desenrolar da formação e da pesquisa
acadêmica que são suas missões.
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